É compreensível que num nível prático algumas pessoas temam que essas duas devoções possam tornar-se um “peso duplo”. Em outras palavras, apesar da sua compatibilidade teológica, e na realidade da sua inseparabilidade teológica, qualquer tentativa de indivíduos ou paróquias de praticar ambas ao mesmo tempo poderia acarretar sérias dificuldades. Esse é o motivo pelo qual, na prática, algumas pessoas ainda vêm essas duas devoções como alternativas, antes que complementares, formando dois lados complementares de um todo maior.

No entanto, vamos mostrar que a prática dessas duas devoções não se transforma num peso duplo. Pelo contrário, a Divina Misericórdia flui do Sagrado Coração e a completa de forma tão perfeita que, como Santa Faustina certa vez escreveu: “O amor de Deus é a flor – e a misericórdia, o fruto” (Diário, 949).

Vamos analisar cada aspecto da devoção ao Sagrado Coração em particular e mostrar como ela naturalmente desabrocha também na devoção à Misericórdia.

Veneração das imagens do Sagrado Coração e da Misericórdia Divina

O Senhor Jesus especialmente exigiu de Santa Margarida Maria que a imagem do Seu Sagrado Coração fosse honrada e venerada pelos fiéis. Em Sua primeira aparição a ela, em  1673, por exemplo, nosso Senhor disse:

“Meu Divino Coração está tão apaixonado pelos homens que não pode mais reter as chamas desse ardente amor; exige que elas sejam derramadas por intermédio de ti e quer revelar-se aos homens para os enriquecer com seus profundos tesouros…”[1]

A seguir, em Sua segunda aparição a ela (1674), Jesus lhe desenhou o Seu Sagrado Coração e tornou os Seus propósitos mais explícitos:

“Depois disso vi Seu divino Coração como num trono de chamas, mais brilhante que o sol e transparente como o cristal. Tinha sua adorável chaga e estava rodeado por uma coroa de espinhos, que significavam as aflições que os nossos pecados Lhe causavam. Acima dele havia uma cruz…

Ele me fez compreender que o ardente desejo que tem de ser amado pelos homens e de os afastar do caminho da perdição, para o qual o demônio os estava impelindo em grande número, fê-lo elaborar esse plano de manifestar o Seu Coração aos homens, junto com todos os Seus tesouros de amor, misericórdia, graça, santificação e salvação… Ele deve ser honrado sob o símbolo desse Coração de carne, cuja imagem queria que fosse publicamente exposta. Queria que eu a carregasse em minha pessoa, sobre o meu coração, para que pudesse gravar aí o Seu amor, encher o meu coração de todos os dons de que o Seu próprio Coração está repleto, e destruir todo afeto desordenado. Em todos os lugares onde essa sagrada imagem fosse exposta para veneração, Ele derramaria as Suas graças e bênçãos.”[2]

Àqueles que estão familiarizados com os seus escritos, de imediato se tornará evidente que nosso Senhor fez promessas muito semelhantes a Santa Faustina e àqueles que veneram a Imagem da Divina Misericórdia:

“Pinta uma Imagem de acordo com o modelo que estás vendo, com a inscrição: Jesus, eu confio em Vós. (…) Prometo que a alma que venerar essa Imagem não perecerá. Prometo também, já aqui na terra, a vitória sobre os inimigos, e especialmente na hora da morte. Eu mesmo a defenderei como Minha própria glória. (…) Ofereço aos homens um vaso, com o qual devem vir buscar gra­ças na fonte da misericórdia. O vaso é a Imagem com a inscrição: “Jesus, eu confio em Vós”. Desejo que essa Imagem seja venerada primeiramente na vossa capela e depois no mundo inteiro” (Diário, 47,48,327).

Jesus não somente fez promessas semelhantes àqueles que veneram essas duas imagens, mas também os movimentos inspirados pelo Seu Espírito para promover tal veneração parecem ser notadamente semelhantes. Por exemplo, no início do século XX nosso Senhor inspirou o Pe. Mateo Crawley-Boevey, um sacerdote do Peru, a iniciar o movimento da solene entronização da imagem do Sagrado Coração nas famílias. Quando solicitado a aprovar essa missão, o Papa São Pio X respondeu ao Pe. Mateo: “Não apenas aprovo, mas ordeno”, e chamou a sua missão de “obra de salvação social”.[3] Em consequência disso, o movimento da entronização espalhou-se rapidamente pelo mundo. O Pe. Mateo descreveu-o da seguinte maneira na sua obra principal, Jesus, Rei de Amor:

“O que é o movimento da entronização? Pode ser definido como o reconhecimento oficial e social da soberania do Coração de Jesus sobre a família cristã, um reconhecimento que se torna tangível e permanente pela solene instalação da imagem do Divino Coração num lugar de honra, e por um ato de consagração…

A família é a fonte da vida, a primeira escolada da criança. Se a fonte da vida nacional estiver envenenada, a nação perecerá. O que pretendemos fazer é implantar profundamente nas famílias a fé e o amor ao Sagrado Coração de Jesus. Se Jesus Cristo estiver nas raízes, a árvore toda será Jesus Cristo”.[4]

Contudo, existe agora também um movimento pela solene entronização da Imagem da Divina Misericórdia em todas as casas. Esse movimento tem as suas raízes nas palavras de Cristo à Santa Faustina: “Sou o Rei da Misericórdia” (Diário, 88), e no próprio poema dela sobre a Imagem, no qual ela escreveu: “Ó doce Jesus, aqui fundastes o trono da Vossa misericórdia” (Diário, 1). Embora Jesus nunca tenha solicitado explicitamente atos de “consagração” ao Seu Misericordioso Coração,  isso parece estar implícito no completo ato de “confiança” solicitado na inscrição da imagem – Jesus, eu confio em Vós” – e o próprio Papa São João Paulo II confiou todo o seu ministério pontifício ao Cristo misericordioso diante da mesma imagem.[5] Esse movimento da entronização mereceu aprovação eclesiástica de diversas fontes, e os seus objetivos são muito semelhantes àqueles do movimento da entronização do Sagrado Coração:

“A entronização (da imagem da Misericórdia) fornece especiais boas-vindas a Jesus para vir aos nossos corações e aos nossos lares, a fim de reivindicá-los para si. Apenas Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida. Quando a graça de Deus reina entre os membros de uma família, a presença do Espírito Santo intensifica neles a vida divina, mergulhando-os nos sacramentos da Sua misericórdia.[6]

A pergunta que naturalmente se apresenta é: haveria uma competição entre esses dois movimentos de entronização? Existe na Igreja a necessidade de ambos? Deveria o novo movimento simplesmente substituir o antigo?

A melhor resposta parece ser que ambos os movimentos entronizam na realidade do mesmo Sagrado Coração de Jesus, mas o Coração visto sob aspectos diferentes. Esses aspectos são verdadeiros e complementares, e, portanto, existe necessidade de espaço na vida da Igreja para que ambos os movimentos de entronização floresçam.

Se estivermos entronizando uma imagem mais tradicional do Sagrado Coração, estaremos honrando o Coração físico de Cristo como o melhor símbolo do mistério da Sua divina pessoa, o “centro oculto” e a fonte de Seu amor para com nossas famílias, e para com todos os homens e mulheres. Além disso, as imagens tradicionais do Sagrado Coração enfatizam a natureza afetuosa, sofredora e ferida do amor de Jesus para conosco; essa é mais uma razão por que Seu Coração é mostrado como encimado por uma cruz, traspassado e coroado de espinhos. O foco está no Seu ferido Coração de amor: Sua ardente sede e Seu ardente desejo de nosso amor, Seu apelo de reparação por todas as nossas falhas em retribuir o Seu amor, e a imagem até sugere que podemos consolar o Seu ferido Coração retribuindo-Lhe com o nosso amor. Em suma, nas imagens tradicionais do Sagrado Coração Jesus nos chama de volta a si: chama-nos para O amarmos novamente, chama-nos a dar aquela resposta de amor em que a nossa santificação e beatitude afinal consistem, em retribuição por todo o Seu terno, afetuoso e ferido amor para conosco.

Muitos dos “santinhos” italianos populares do Sagrado Coração refletem essas mesmas ênfases, inclusive nas orações que podem ser encontradas no verso deles; por exemplo:

“Ó Sagrado Coração de Jesus, cheio de infinito amor, despedaçado pela nossa ingratidão e traspassado pelos nossos pecados, mas que sempre nos amais, aceitai a consagração que Vos fazemos de tudo que somos e que possuímos”.[7]

Na imagem da Divina Misericórdia, por outro lado, a ênfase não se encontra tanto no movimento a partir de nós para Cristo, porém mais no movimento Dele em direção a nós. Tudo nessa imagem fala do benevolente Cristo ressuscitado tomando a iniciativa e nos procurando na escuridão com os raios do Seu amor misericordioso. Nessa imagem, Cristo é mostrado encaminhando-se ao espectador, vindo para nos encontrar; os raios do amor misericordioso que saem do Seu Coração espalham-se para envolver o espectador, e Sua mão está levantada numa bênção de paz, mesmo antes de a pedirmos.

Como Jesus certa vez disse a Santa Faustina: “Alma pecadora, não tenhas medo do teu Salvador. Eu, por primeiro, tomo a iniciativa de Me aproximar de ti, pois sei que por ti mesma não és capaz de elevar-te até Mim” (Diário, 1485). Aqui, o que Cristo nos pede para fazermos, acima de tudo, é simplesmente recebermos a Sua graça com confiança: “Jesus, eu confio em Vós”. Não é de admirar que a imagem seja tão poderosa na nova evangelização, visto que é um pequeno resumo da mensagem básica do Evangelho: o benevolente oferecimento do amor livre, incondicional e misericordioso de Deus para conosco, através de Jesus Cristo.

Numa ocasião, Santa Faustina teve uma visão que lhe confirmou o papel do Seu Coração de Jesus como a fonte da Misericórdia:

“Depois da renovação dos votos [em 1932] e da santa Comunhão vi, de repente, o Senhor, que me disse benignamente: Minha filha, olha para o Meu Coração misericordioso. Quando fixei o meu olhar nesse Coração Sacratíssimo, saíram Dele os mesmos raios que estão na Imagem — como Sangue e Água, e compreendi como é grande a misericórdia do Senhor” (Diário, 177).

Novamente, a entronização da imagem da Divina Misericórdia é também uma entronização do Sagrado Coração, mas desse Coração visto sob um aspecto diferente. O foco está no amor misericordioso que flui para nós do Seu Coração, porque nessa imagem, o que se apresenta de forma mais distinta são os raios vermelho e pálido que resplandecem no Seu peito. Esses raios representam as graças que curam e que santificam, especialmente as do Batismo e da Eucaristia, que brotam do Sagrado Coração de Jesus para nós. Isso torna a imagem da Misericórdia especialmente adequada para as desesperadas necessidades de tantas famílias no nosso tempo, famílias muitas vezes destroçadas e feridas pelo mal: apostasia, adultério, divórcio e separação, contracepção, fornicação, ganância, consumismo materialista e assassinato dos não nascidos. Essas investidas do mal, muitas vezes promovidas pela cultura moderna, estão simplesmente dominando muitas famílias católicas. Os raios da imagem da Misericórdia mostram-nos as graças de cura e de santificação que o nosso Salvador anseia por derramar em todo coração humano, desde que as aceitemos com confiança:

“A Minha misericórdia é maior que as tuas misérias e as do mundo inteiro. (…) Por ti permiti que fosse aberto pela lança o Meu Sacratíssimo Coração e, assim, abri para ti uma fonte de misericórdia. Vem haurir graças dessa fonte com o vaso da confiança” (Diário, 1485).

 

***

Capítulo do livro “Jesus, misericórdia encarnada”, de autoria de Robert Stackpole.

Este foi o quarto texto da série que reflete sobre a proximidade das devoções do Sagrado Coração e da Divina Misericórdia.

Leia também os outros textos desta série

Para ler o primeiro texto desta série “O Sagrado Coração de Jesus e a Divina Misericórdia”, clique aqui!

Para ler o segundo texto “O Sagrado Coração e a Divina Misericórdia são inseparáveis”, clique aqui!

Para ler o terceiro texto “O Sagrado Coração transborda de amor misericordioso para conosco”, clique aqui!

Para ler o quinto texto “As festas litúrgicas da Divina Misericórdia e do Sagrado Coração de Jesus”, clique aqui!

Para ler o sexto texto “A proximidade dos atos devocionais do Sagrado Coração de Jesus e a Divina Misericórdia, clique aqui!

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[1]Conforme citado por Margaret Williams RSCJ.

[2]Santa Margarida Maria Alacoque, carta ao Pe. Croiset.

[3]Williams, The Sacred Heart, p.188.

[4]MateoCrawley-Boeveu SS.CC.

[5]Papa João Paulo II, “Alocução no Santuário da Divina Misericórdia”, na Polônia, em 7 de junho de 1997.

[6]Bispo Emilio Allué SDB e Kathleen Keefe, The ImageofMercy (Yonkers, NY: Peace Through Mercy Publishing, 1996), p.67.

[7]Santinho de uma editora italiana.

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