“No terceiro dia, houve um casamento em Caná da Galileia, e estava ali a mãe de Jesus. Também Jesus e seus discípulos foram convidados para o casamento. Faltando o vinho, a mãe de Jesus Lhe disse: ‘Eles não têm vinho!’ Jesus lhe respondeu: ‘Mulher, para que me dizes isso? A minha hora ainda não chegou’. Sua mãe disse aos que estavam servindo: ‘Fazei tudo o que ele vos disser!'” (Jo 2,1-5).
Segundo São Tomás de Aquino, a misericórdia de Deus consiste em tirar da miséria os pobres desvalidos, e em suprir as suas limitações. Trata-se, pois, de Sua vontade de fazer o bem a todos (S Th I, q.21, a.3, c).
Ninguém melhor do que Maria conhece as entranhas de misericórdia da Santíssima Trindade, como nos disse João Paulo II: “Maria é aquela que conhece mais profundamente o mistério da misericórdia divina. Conhece o seu preço e sabe quanto é elevado. Neste sentido, chamamos-lhe Mãe de Misericórdia ou Mãe da Divina Misericórdia. Em cada um destes títulos há um profundo significado teológico (Dives in Misericordia, 9).
Maria, nossa Mãe de Misericórdia, exerce a misericórdia continuamente com todos os seus filhos. Isso é o que Ela faz continuamente com cada um de nós, dá-se conta de nossas carências antes inclusive do que nós, e pede por nós, porém não só intercede como ainda se antecipa, busca soluções e sempre nos propõe: “Fazei tudo o que Ele vos disser!”.
Como deveríamos agradecer cada dia a Maria essa terna solicitude que tem para conosco e para com os nossos entes queridos! Ela, melhor do que ninguém, sabe praticar as obras de misericórdia corporais, socorrendo-nos em nossas necessidades materiais, e, sobretudo, as obras de misericórdia espirituais, para o bem das nossas almas! Ela conhece nossas enfermidades espirituais, que é onde estão nossas deficiências mais graves e perigosas. Por isso, o Senhor deu-a para nós como Mãe, desde a cruz. Ele sabia apreciar a participação de Maria na obra da Redenção e cuidava dela. Em um certo momento, durante a Sua agonia na Cruz, tirando forças de onde não as tinha, inclinou a cabeça voltando-se para o Apóstolo João e disse a Maria: “Mulher, eis o teu filho!” e, em seguida, dirigindo-se a Seu discípulo amado: “Eis a tua mãe!”; é como se o Senhor dissesse: João, ocupa a partir de agora meu lugar; respeita-a, ama-a, cuida dela tal como Eu fiz até agora, e “a partir daquela hora, o discípulo a acolheu no que era seu” (cf. Jo 19,27).
“Jesus, ao ver Sua mãe e, ao lado dela, o discípulo que Ele amava, disse à mãe: Mulher, eis o teu filho!” (Jo 19, 26).
Que terna solicitude do Coração de Jesus! Nos últimos momentos de Sua vida, Ele se lembra daquela que Lhe havia dado a vida. Ele entrega Maria como Mãe para aquele a quem mais havia amado entre os Apóstolos, mas, ao mesmo tempo, na pessoa de João, o Senhor nos entrega a cada um de nós sob os cuidados maternos da melhor Mãe! Cada cristão, ao olhar para a cruz, pode ouvir as palavras do Crucificado: “Eis a tua mãe!”, e sabe bem que Maria o vai tratar verdadeiramente como filho.
“Mas, acaso Maria se converteu em Mãe de todos os pecadores? Sim, porém em outro sentido. Assim como Jesus veio buscar e salvar o que estava perdido (cf. Lc 19,10), assim também Maria buscará com todas as forças levar pelo caminho da penitência e da confiança na misericórdia de Deus aqueles que se perderam e andam errantes pelos caminhos da perdição. Ela é, depois de Cristo, a mais compassiva para com os pobres pecadores: é a Mãe de Misericórdia sobretudo para com eles. Com que fervor lhes alcança a graça, despertando neles, depois de suas quedas, o peso na consciência e a contrição. E se as quedas se repetem com frequência, então o pecador é objeto de seus maiores cuidados. No Céu, saberemos quantas almas foram arrancadas das mãos da justiça pela Virgem Maria!” (Sopoćko, Miguel. A Misericórdia de Deus em Suas obras, volume II).
Desde o momento da Encarnação, Maria entra na órbita divina da Misericórdia e do Sacrifício do seu Filho, como nos dirá João Paulo II:
“Maria é aquela que de modo particular e excepcional — como ninguém mais — experimentou a misericórdia e que, também de modo excepcional, tornou possível com o sacrifício do coração a própria participação na revelação da misericórdia divina. Este seu sacrifício está intimamente ligado à cruz do seu Filho, aos pés da qual ela haveria de encontrar-se no Calvário” (Dives in Misericordia, 9).
As palavras ‘eis o teu filho!’ proferidas por Jesus do alto da cruz completam o teu diálogo, Mãe de Misericórdia, com Deus no momento da anunciação.
“Ali aceitaste ser a Mãe do Filho de Deus, e aqui o Filho de Deus faz de ti Mãe dos pecadores, e, portanto, minha Mãe. Ali me concebeste em teu seio maternal, aqui me dás a vida sobrenatural. Começaste a cumprir a missão de ser a Mãe de Misericórdia e começaste a exercer tua maternidade com o bom ladrão, que, juntamente com João, acolheste como filho adotivo. São João Damasceno chamou-te, com razão, esperança dos desesperados. São Lorenzo Justiniano deu-te o título de Mediadora dos criminosos, Santo Agostinho chamou-te de Refúgio dos pecadores. Santo Éfrem, de Porto seguro dos náufragos e Defensora dos condenados; São Bernardo, Refúgio e Socorro dos perdidos. Somente os pagãos de coração duro se excluem do teu amparo, porém confio que também por eles tu intercedes. Eu te amo, Mãe de Misericórdia! Minha Mãe, pois Jesus, por Sua Paixão, inscreveu também a mim em teu Coração Imaculado” (Sopoćko, Miguel. A Misericórdia de Deus em Suas obras, volume II).
Por Xavier Bordas (teólogo, tradutor no Santuário da Divina Misericórdia da Polônia)
A história do ícone da Mãe de Misericórdia
A devoção à Mãe da Misericórdia evidenciou-se a partir do séc. XVI, quando na teologia se passou a sublinhar a participação de Maria na economia da Salvação. Maria Santíssima é, então, venerada não somente como Mãe Dolorosa ‒ que acompanha o Filho no Calvário ‒ mas também como Mãe Misericordiosa ‒ Corredentora.
A imagem da Mãe de Misericórdia foi pintada por volta de 1620 na Lituânia, a pedido da prefeitura de Vilnius para uma das nove portas da muralha que cercam a cidade, construída para protegê-la da iminente invasão tártara. Essa imagem seria sinal de proteção aos que por ela passassem. Foi colocada sobre a principal porta, conhecida como Porta da Aurora, em polonês, Ostra Brama.
Mais adiante foi também colocado uma imagem de Cristo Salvador (da qual resta uma cópia no museu Dailés). A disposição dessas duas imagens possuía um forte significado: o caminho que leva o cristão por Maria a Cristo, e também por Cristo à Maria. Um pregador, por volta de 1670, dizia:
“Para entrar e sair da cidade, os homens têm que passar por esta porta. Assim, na Porta do Céu está esperando por nós Maria Santíssima. Por suas mãos passam as graças do Céu para a Terra e, por intercessão e com a ajuda dela, os homens entram no Céu. Ela é a Porta do Céu pela qual veio à terra o Dom Magnífico ‒ Eterno Filho de Deus. Não existe outra porta pela qual passem as graças do Céu, a não ser pelas mãos da Mãe de Deus. (…) A porta serve também para proteger. Portanto, a Igreja tem sua Protetora”.
A imagem, feita originalmente como pintura convencional, representa a Virgem Santíssima com as mãos espalmadas cruzadas sobre o peito e a cabeça inclinada, envolta em véu branco, vestida com túnica vermelha, recoberta com manto azul, envolta por grossos raios de luz. Inserida na parede, era protegida da neve e do vento por uma persiana. Em 1626 um convento de frades Carmelitas Descalços é inaugurado anexo ao portal. Em 1655, um incêndio provocado pelos invasores russos destrói a Porta da Aurora ‒ a imagem escapa ilesa, ficando sob o cuidado dos Carmelitas, que inauguram em 1671 uma capela no mesmo lugar.
Nesse tempo a imagem é revestida por uma camada de prata, aproximando-a da tradição iconográfica oriental. O fundo, as mãos e o rosto da Virgem escureceram com o tempo. Entre os elementos acrescidos à obra encontra-se a dupla coroa (século XVIII, que se perdeu na Segunda Guerra Mundial), o manto com rosas, tulipas, cravos e outras flores em prata, e a lua crescente projetada na frente da imagem (1849): elementos vinculados à representação da Imaculada Conceição.
Em 1715, um novo incêndio atingiu Vilnius. A imagem é salva e levada para a igreja de Santa Teresa, enquanto o portal é reconstruído na forma de capela. Em 1761, os Carmelitas publicam uma coletânea de milagres atribuídos a ela, especialmente na proteção da cidade.
Em 1773, o Papa Clemente XIV concede indulgências a quem rezar diante dela. Quando os russos destroem a muralha da cidade entre 1799-1802, é poupado apenas o portal da imagem, devido a fama e reverência que ela despertava nos ortodoxos. O próprio convento foi dissolvido em 1844 pelos russos.
Em 02.07.1927, a imagem mais cara à piedade do povo lituano, a da Mãe de Misericórdia, foi canonicamente coroada por decreto do Papa Pio XI. Recebeu, então, novas coroas de ouro.
No domingo seguinte à Páscoa de 1935, em Ostra Brama, junto ao ícone da Mãe de Misericórdia, o Padre Miguel Sopoćko expôs pela primeira vez a imagem de Jesus Misericordioso para a veneração pública, conforme as disposições apresentadas pelo próprio Cristo à Santa Faustina, religiosa da Congregação das Irmãs de Nossa Senhora da Misericórdia.
Na Segunda Guerra Mundial, o ícone da Mãe de Misericórdia não foi retirada de seu lugar. Com o país anexado pela União Soviética, todas as igrejas da capital foram fechadas, exceto a da Porta da Aurora. Já dissolvida a URSS em 1993, o Papa São João Paulo II recitou o terço na capela junto à imagem.
No mistério de sua Imaculada Conceição, Maria foi objeto da misericórdia previdente do Senhor. A ela apraz socorrer seus filhos, sujeitos à concupiscência, da qual ela não teve mancha. Mater Misericordiae, Maria sente compaixão pelos seus filhos. Suplica por eles a Jesus. Na sua grandeza, ela é ao mesmo tempo a humilde serva do Senhor e a intercessora nossa.
Por Volnei Grebogi