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A ESPIRITUALIDADE NA VIDA CONSAGRADA

A 50 ANOS DO VATICANO II

Palestra Proferida por Frei  Clodovis Boff, no Encontro da Vida Consagrada com o Cardeal Dom João Aviz [1]

Por que este tema? Porque é o que mais importa na Igreja. Pois se trata de sua vida mesma, da sua “vida no Espírito”. A espiritualidade é o oxigênio da Igreja. Se isso vale para toda a Igreja, vale muito mais para a Vida Consagrada (= VC). Esta, como se sabe, apoia-se no tripé: oração, fraternidade e apostolado. Ora, existe VC sem apostolado: são os monges; existe também VC sem fraternidade: são os eremitas; mas não existe VC sem oração. Esta é o coração da VC. É dela que vivem os dois outros elementos: a fraternidade e a apostolado. Daí a importância de se tratar da espiritualidade na VC.[2]

A presente palestra se desdobrará em três partes: 1) O primado da espiritualidade na VC segundo a tradição da Igreja; 2) Crise do primado da espiritualidade na Modernidade e a resposta da Igreja e da VC; 3) Volta da espiritualidade na VC hoje.

PRIMADO DA ESPIRITUALIDADE NA VC

SEGUNDO A TRADIÇÃO DA IGREJA

 Clarificação das palavras “primado” e “espiritualidade”

Convém, de início, fazer um trabalho de esclarecimento semântico, explicitando o sentido dos dois termos presentes na expressão “primado da espiritualidade”, foco de nossa reflexão. Assim se evitarão muitos equívocos.

Vejamos, primeiro, “espiritualidade”. Em torno desta palavra há efetivamente hoje uma confusão formidável. É uma palavra-chiclete: é espichada em todas as direções. Tudo vira espiritualidade. Há espiritualidade para todos os gostos. Não. A rigor, espiritualidade é o cultivo de nossa vida espiritual, a vida do Espírito em nosso espírito, a vida de união com Deus pelo amor. Em suma, espiritualidade não é senão a própria a fé, mas agora vivida de modo consciente e intenso.

Espiritualidade não é, em primeiro lugar, relação com o próprio ego, com os outros ou com o mundo. É antes relação direta com o Mistério de Deus. É, portanto, uma relação vertical, teologal, religiosa. É “religar-se”pessoal e intimamente a Deus. Sendo relação imediata com o Mistério, a espiritualidade é uma experiência: a experiência de Deus. E sendo experiência absoluta com o Absoluto, ela tende e envolver e transformar todo o ser, em todas as suas dimensões.

df16c4e8-33d1-4fee-9013-d65c49bce80c_170x255A experiência espiritual se dá de modo concreto e concentrado na oração. Santa Tereza de Ávila chamava as pessoas espirituais de homens ou mulheres de oración. Temos tanto espiritualidade quanto temos de oração. É ocioso dizer que aqui se trata da oração autêntica e não de suas contrafações. Como Pascal, pode-se dizer: a oração verdadeira ri-se da oração falsa. Dizer primado do espiritual equivale a dizer primado de Deus mesmo! Por isso, há que ouvir com atenção a advertência do místico: Cuide para que tua oração não esconda teu Deus, como a pérola da amada pode esconder seu rosto.

É, portanto, a relação ascendente e facial com Deus que define a espiritualidade em sua essência, e não qualquer outra relação, seja com os outros (horizontal), seja com o mundo (descendente). Estas, contudo, vem logicamente em seguida: a evangelização, o comportamento ético, o compromisso social e tudo o mais. Essas coisas decorrem, por força interna, daquela relação primeira, que é a espiritual. Assim, a relação entre espiritualidade e compromisso não é de justaposição, mas de dependência e de derivação do segundo em relação à primeira, de modo que, quanto mais forte é a vida espiritual, tanto maior será seu efeito no mundo externo, assim como será tanto maior o impacto de uma queda de água quanto mais alto é o lugar de onde provém. A oração e a vida estão entrelaçadas como os dois madeiros da cruz: quanto mais alto é o cepo da oração, tanto mais alta é a trave da vida que nele está fixo.

E “primado” – o que é precisamente? “Primado” (primazia ou prioridade) não é aqui entendido em sentido apenas temporal, como o que vem primeiro, o que está no começo, mas que, em seguida, se deixa para trás e fica no passado. “Primado” aqui é, antes de tudo, algo de estrutural, como a fonte permanente de tudo, o fundamento perene das coisas, o princípio que vigora em permanência e que anima a vida por inteiro. No caso do “primado” de Deus, isso significa não só que Deus é sempre “o primeiro servido”, mas que Ele é e permanece a base de tudo, a fonte última de toda a nossa vida.

“Primado”, ademais, não é apenas a premissa teórica ou o pressuposto intelectual que se admite formalmente, mas que em seguida não opera e informa nosso falar e nosso agir. Antes, “primado” é tomado aqui como princípio fundante ou instituinte, funcionando de forma permanente ao modo de alma ou enteléquia de tudo, como algo que se impõe por sua força interna, ou seja, por sua autoridade. Assim, dizer que a espiritualidade detém o primado na vida do cristão e do consagrado é dizer que ela informa tudo, inclusive a relação com os outros e com o mundo. Ora, admitir de boca o “primado de Deus” e depois não dar efetivamente a Deus o primeiro lugar é tratá-Lo como um deus otiosus.

Primado da espiritualidade na Vida Consagrada

Depois desses esclarecimentos, venhamos à VC. Que a espiritualidade tenha aí o primado isso é, como diria Nelson Rodrigues, o “obvio ululante”, tão óbvio como os chamados “princípios primeiros” em filosofia. O primado da espiritualidade na VC é um tema pisado e repisado pelo Magistério da Igreja. Ficando nos documentos que nos separam dos 50 anos do Concílio, basta aqui referir algumas afirmações explícitas.

Abramos, em primeiro lugar, os documentos conciliares. Declara a Lumen Gentium que a VC “patenteia do modo peculiar a transcendência do Reino de Deus e seus altos destinos sobre tudo o que é terreno” (n. 41c). Já o decreto Perfectae Caritatis (1965) diz: “Os Religiosos, antes de mais nada, procurem e amem a Deus que nos amou primeiro”. Logo em seguida indica as expressões e meios deste primado: a oração, a palavra e a eucaristia (n. 6). Antes ainda havia declarado: “O seguimento de Cristo proposto no Evangelho é a norma última e a regra suprema da Vida Religiosa” (n. 2).577611_443613839047622_1764524562_n

Venhamos agora à exortação pós-conciliar Evangelica Testificatio (1971) de Paulo VI. Lê-se aí logo de entrada: “O testemunho evangélico na Vida Religiosa manifesta claramente (…) o primado do amor de Deus” (n. 1). Mais adiante explica que tal primado se exprime na oração, a qual “deve ocupar o primeiro lugar” na vida dos consagrados. A oração é, ademais, declarada o “aferidor” da vitalidade da VC (n. 45).

Citemos enfim, a exortação pós-sinodal de João Paulo II Vita Consecrata (1994). Essa reza explicitamente: “As pessoas consagradas (…) testemunham o primado de Deus e dos bens futuros” (n. 85).

Se formos, porém, mais a montante, veremos que o primado de Deus não vige só na VC, mas também na Igreja e na vida cristã em geral. Este é o sentido óbvio do primeiro mandamento: “Amar a Deus sobre todas as coisas”, que vale para todos. A tradição espiritual, por sua parte, sempre enfatizou a superioridade de Maria de Betânia, símbolo da contemplação, sobre Marta, símbolo da ação. Aquela escolheu a “parte melhor”, o unum necessarium, embora o serviço que coube à Marta seja também uma “parte boa” e mesmo nobre.

Um dos maiores teólogos do século XX, Hans Urs von Balthasar deu uma expressão nova e original ao primado de Deus, que viria expresso pelo lugar de Maria na Igreja. Comparando o respectivo papel das figuras da Virgem e de Pedro, Balthasar faz ver que o “princípio mariano” é central na Igreja, por representar o que é nela de mais essencial e definitivo: o amor, a graça, a santidade; enquanto o “princípio petrino”, figura da autoridade e ordem, vem depois, sendo na Igreja apenas funcional e transitório.[3] Se acrescentarmos a figura de Paulo, como representante da missão apostólica, poderíamos dizer que, igualmente em relação ao “princípio paulino”, o “princípio mariano” leva a dianteira, assim como o “discípulo” vem antes do “missionário”. Maria é, pois, o coração da Igreja e é desse coração pulsante de amor e adoração que provém todo seu fervor missionário e todo o seu zelo apostólico.

Primado da espiritualidade na vida simplesmente humana

Subindo agora ainda mais a montante e situando-nos no plano meramente humano e social, constatamos que, em todas as culturas pré-modernas, a religião era o centro de tudo. Deus era o fecho da abóboda de todo o edifício social e cósmico. Mas sendo a experiência espiritual o princípio inaugural e o centro vivificador de todo sistema religioso, podemos dizer que a espiritualidade era o elemento mais íntimo de toda sociedade.

553313_383476251707932_1748446976_nMas mesmo na modernidade secularizada e considerando apenas o humano, a espiritualidade ocupa ou deveria ocupar o primeiro lugar. Por quê? Porque nada há de melhor e de mais profundo no ser humano do que seu espírito. Nada há de mais precioso e decisivo que seu coração. Por isso recomenda a Bíblia: “Cuide do teu coração, pois nele estão as fontes da vida” (Pv 4,23). E Jesus não vai também por aí quando ensina: “É do coração do homem que procedem os maus desígnios” e tudo o mais (Mt 15,19)? Não estão no interior do homem as fontes inspiradoras de toda sua vida e sua ação? E não é, pois, disso mesmo que o ser humano deveria principalmente se ocupar?

Do mesmo modo, “cuidar da alma” foi a grande consigna de Sócrates. Como – perguntar-se-á – cuidar da alma? Enchendo-a de sabedoria e virtude, como explicou o mesmo filósofo diante do tribunal: “Toda a minha atividade consiste nisto: ando por toda a parte, buscando persuadir jovens e velhos a não pensar com tanta paixão no corpo e no dinheiro. Oh! Pensai antes na alma. Procurai que a alma seja boa e perfeita!”[4]

Vê-se assim que não só na Vida religiosa, nem apenas na vida cristã, mas até na vida simplesmente humana, a espiritualidade tem, por princípio, o primado de tudo. Não é por nada que hoje, mesmo entre os incrédulos do nosso pós-moderno, cresce o interesse por espiritualidade.[5]

VIRADA MODERNA: CRISE DO PRIMADO DA ESPIRITUALIDADE

E RESPOSTA DA IGREJA

A revolução do primado: da mística para a política

A modernidade, processo que vem desde o século XVI, inverteu a ordem do primado da contemplação do divino sobre a práxis humana.[6] Emblemas dessa virada são algumas afirmações célebres, como a de Goethe: “No princípio era a ação” (Goethe); ou a de Marx: “Os filósofos se contentaram em interpretar o mundo; a questão é mudá-lo”. Ademais, Prometeu, o herói mítico que desafiou os deuses e roubou o fogo do céu, permitindo assim a humanidade progredir no domínio do mundo, tornou-se o grande símbolo do “homem moderno”, o homem que peita os céus e parte para conquistar o mundo.

Esta foi uma revolução inédita na história da civilização mundial. Ela teve consequências gigantescas, algumas delas catastróficas. Antes, o ideal de Deus e da religião sempre vinha em primeiro lugar. Já na modernidade foi o ideal do homem e de sua ação demiúrgica que tomou o comando. Quanto a Deus, este foi inicialmente posto à margem (séc. XVII), depois dispensado (séc. XVIII) e finalmente expulso (séc. XIX e XX). Esse foi o caminho da modernidade hegemônica, a de tipo francês (pois há de reconhecer que houve também outra modernidade, a de tipo anglo-saxão, que, embora marginal, manteve-se aberta à dimensão religiosa da vida, como mostramos.[7]

Como mostrou muito bem um dos maiores filósofos brasileiros, o padre jesuíta Henrique Cláudio de Lima Vaz, num estudo cheio de erudição, a inversão moderna da hierarquia de valores, conferindo o primado à práxis humana sobre a religião, acarretou o primado da política sobre a mística.[8] Essa inversão levou à perversão e degradação da política em mística. Surgiu então toda sorte de pseudomísticas: a “mística da práxis”, a “mística do poder”, “da luta”, “da revolução”, “da violência” e por aí vai.[9] Num estranho processo de “dessublimação”, investiu-se a imensa energia religiosa do homem sobre a práxis histórica, resultando na “politização da mística” e finalmente na “mistificação da política”.

Reação da Igreja e da VC frente à supremacia do homem e de sua práxis

Como a Igreja e a VC reagiram à modernidade que entronizou a ação do homem sobre a contemplação de Deus? Elas ficaram naturalmente abaladas. Depois de um longo caminho, marcado por resistências e contemporizações, conflitos e condenações (basta lembrar o Syllabus condenatório de Pio IX), a Igreja decidiu finalmente, com o Vaticano II, pela via do diálogo com o mundo moderno. Isso foi explicitamente reconhecido por Paulo VI, ao afirmar, em mais de uma ocasião, que o Concílio assinalou o ponto de “encontro da Igreja com o mundo atual”.[10]

Para chegar lá, o Concílio assumiu propositalmente um talho eminentemente pastoral, como queria expressamente seu inspirador, o papa João XXIII. Daí a necessidade de renovar as estruturas da Igreja, ou seja, como se dizia, fazer o aggiornamento. São, pois, estas duas palavras pode definir o Vaticano II: pastoral e renovação. Como se vê, o Vaticano II foi um Concílio com uma intenção não teórica, mas prática.prev34[1]

Mas nem por isso o Concílio cedeu ao pragmatismo ou praxismo moderno. Pois, tanto a pastoral quanto a renovação demandada por ela foram consideradas pelo Concílio sempre a partir da fé e de sua verdade perene. De fato, no discurso de abertura, João XXIII colocou a decisiva distinção entre a doutrina da fé, que deve permanecer sempre intocada, e sua expressão cultural, que pode variar segundo os tempos, para justamente melhor transmitir aquela doutrina.[11] Portanto, se o foco imediato do Concílio era a ação pastoral da Igreja, seu foco maior era e só tinha que ser o da fé, aquela fé que foi “uma vez por todas confiada aos santos” (Jd3). Este é sempre o foco I da Igreja e qualquer outro será sempre seu foco II.

Foi por isso que todas as reformas propostas pelo Concílio, tanto pastorais, quanto institucionais, foram precedidas, ilustradas e aprofundadas, em seus respectivos documentos, por uma teologia sólida e rica, como se vê logo no início dos mesmos. Isso é declarado de modo explícito no documento mais tipicamente conciliar, porque mais especificamente pastoral, do Vaticano II, a Gaudium et Spes. Aí, já na nota 1, se diz que a pastoral tratada no documento está “baseada em princípios doutrinários”, ao mesmo tempo em que sua doutrina não fica privada de “intenção doutrinária”. Assim, à doutrina da fé foi dado o primado absoluto, ou seja, o primado axiológico, mesmo se à pastoral se conferiu o primado relativo, ou seja, histórico.

Demos três exemplos do primado axiológico da teoria teológica sobre a prática pastoral. A Lumen Gentium, logo no cap. I, oferece uma visão teológica altíssima da Igreja. Aí, sob Benedict-Communion-on-Tongue-e1319233549859o título “O mistério da Igreja”, esta é contemplada a partir da Trindade (Ecclesia de Trinitate). É vista como “sacramento” do plano amoroso e salvífico do Pai, plano executado pelo Filho e animado pelo Espírito. Só depois, no cap. II, vem a Igreja a partir de nós (Ecclesia exhominibus), entendida então como “Povo de Deus”, e isso antes ainda da Hierarquia, de que na Constituição se ocupa apenas o cap. III.

O mesmo encaminhamento se verifica na Gaudium et Spes. Essa Constituição dedica toda a parte I à antropologia teológica sob o título: “Vocação do homem”. Desdobra-se aí uma visão ampla e luminosa do ser humano em sua tríplice dimensão: a dignidade da pessoa humana, sua convivência com os outros e sua atividade no mundo. Só depois e à luz dessa alta theoria da fé, o Concílio enfrenta, na parte II, “alguns problemas mais urgentes” do mundo moderno.

Falemos, por fim, do decreto sobre as missões, intitulado Ad Gentes. Aí também funda-se toda a atividade missionária da Igreja na doutrina da fé, que é, aqui também, o Mistério trinitário. Aquele documento mostra que a missão começa no seio da própria Trindade, enquanto e-missão, já ad intra, do Filho e do Espírito a partir do “amor fontal” do Pai (n. 2); segue depois a missão ad extra, primeiro a do Filho (n. 3) e depois a do Espírito (n. 4); e vem finalmente a missão da Igreja no vasto mundo (n. 5). Pode-se mostrar o mesmo vigor e a mesma beleza na fundamentação do apostolado dos leigos no início do decreto Apostolicam Actuositatem. E o mesmo se pode dizer de outros documentos, mas bastam os referidos.

O lugar da espiritualidade no Vaticano II e seus limites

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Se a theoria teológica do Concílio foi rica e sólida, como ficou a theoria espiritual, ou seja, a espiritualidade como tal? Digamos de imediato que, a nosso ver, a espiritualidade do Concílio não esteve à altura de sua teologia. É verdade, há sinais concretos que testemunham o vivo interesse do Concílio por espiritualidade. Em primeiro lugar, é significativo que os Padres conciliares tenham escolhido a liturgia como primeira questão a ser discutida, tendo sido inclusive a primeira a ser aprovada e aplicada.[12] Aí se faz a grande declaração de que a Liturgia é a “fonte” e o “cume” de toda a vida da Igreja, inclusive do apostolado (SC 10). Depois, o Concílio dedicou, na Lumen Gentium, todo o cap. V ao tema da “vocação universal à santidade”, insistindo em que a busca da santidade, ou seja, da perfeição cristã é um chamado para todos os cristãos, e não só para os membros dos então ditos “estados de perfeição”: os religiosos, incluindo aí os clérigos. Por fim, o Vaticano II se refere, mais ou menos extensamente, à espiritualidade, mesmo sem usar o termo, em praticamente todos os documentos, não sem reivindicar sua importância (cf. SC 11-13; DV 25; LG 39-42; UR 7-8; AG 24-25;CD 15; PO 13; PC 6; OT 8-12; AA 4).

Sem embargo, é preciso reconhecer que tudo isso foi ainda pouco.[13] Já é sintomático que no índice analítico dos documentos conciliares a palavra “espiritualidade”, com seus derivados (“vida espiritual”, “tradições espirituais”, “patrimônio espiritual”), aparece apenas sete vezes (UR 4g, 6b, 15e: 3 vezes; AG 29; PC 6). As referências à questão da espiritualidade que, como vimos, aparecem em quase todos os documentos, são mais perfunctórias do que propriamente centrais e estruturantes. À exceção de alguns desenvolvimentos, de resto esplêndidos (por ex. PO 12-18: espiritualidade do padre; e AA 29: espiritualidade do apostolado leigo), os documentos conciliares em geral, no que tange à espiritualidade, só dão elementos, os quais, embora importantes, precisavam ser maiormente explorados e ampliados. Em relação à disciplina de “teologia espiritual” só encontramos uma referência (SC 16a). Ademais, no currículo previsto para os seminários, a espiritualidade não mereceu um lugar à parte, mas vem aí incluída, como era costume, na “teologia moral”, como seu complemento e aperfeiçoamento(OT 16d).[14]

Esse é, a nosso ver, o grande limite do Concílio: faltou espiritualidade e sobrou teologia. Tudo se passou como se o Vaticano II acreditasse que, para garantir a esperada reforma pastoral e estrutural, bastava dar-lhe uma boa base teológica. Por outras: apostou mais na fides quae (doutrina) do que na fides qua (vivência). Por ter-se querido declaradamente pastoral, o Concílio deu efetivamente a essa intenção uma base mais doutrinária do que espiritual. Para atrair o mundo moderno, o Concílio talvez apostasse mais no splendor veritatis da doutrina cristã, agora de roupa nova, do que no testemunho da santidade. De fato, como confessou um dos teólogos conciliares mais influentes, “o Concílio foi largamente feito pela contribuição dos teólogos” (Yves Congar).[15]a9870cc894ebf9865134b508a4e18783

A nosso ver, o Vaticano II necessitava, para seu propósito renovador, de uma base mais larga e profunda que a teológica: precisava de uma ampla e rica base espiritual. Como ensina a experiência histórica da Igreja, a renovação espiritual é condição de qualquer renovação eclesial, pastoral ou estrutural. De fato, os grandes movimentos de reforma, como o monástico, o mendicante e o tridentino, foram precedidos, acompanhados, animados e seguidos de uma poderosa reforma espiritual. Pois, não é a espiritualidade a alma de toda a vida da Igreja, tanto de suas estruturas, quanto de sua ação no mundo? Na Igreja não basta a verdade sabida: precisa-se ainda da verdade vivida. Ciência é pouco: é preciso mais a experiência.

 Compensações ao déficit espiritual dos documentos conciliares

Sem embargo, não há porque se espantar com as limitações (não erros) do Vaticano II. Todo concílio tem seus limites. Isso se deve a muitos fatores, entre os quais o foco específico escolhido, o contexto histórico e o nível de consciência dos participantes. Isso é natural: todo concílio é obra também dos homens, sempre limitados. Esses limites são percebidos apenas com o tempo, quando o contexto e a consciência já mudaram. Por isso só hoje, à distância de 50 anos, é que podemos reconhecer melhor os limites do Vaticano II.

Contudo, o déficit de espiritualidade conciliar foi compensado no pós-concílio, entre outras, por duas instâncias de alta densidade espiritual: 1) o papado, que aplicou, com vasto respiro religioso, as reformas conciliares. Efetivamente, Paulo VI, João Paulo II e Bento XVI foram homens de grande sabedoria espiritual; 2) os novos movimentos de espiritualidade, alguns deles anteriores ao Concílio, que introduziram na vida da Igreja pós-conciliar um poderoso fermento carismático e espiritual. De fato, esses movimentos foram surpreendentes pontos de luz na confusão pós-conciliar, segundo parecer do então Cardeal Ratzinger.[16]

Parece mesmo que Paulo VI se deu conta da deriva eclesialista e ativista que poderia ameaçar o pós-concílio, não tanto por causa de seu foco respectivamente eclesiológico e pastoral, mas antes devido às suas interpretações e aplicações indevidas. Daí ter alertado para a necessidade de dar um assento espiritual, e não só teológico, à renovação conciliar. Seu moto poderia ter sido: renovação pastoral a partir da renovação espiritual. Em suas intervenções durante o Concílio, relembrou diversas vezes a necessidade de dar o primado absoluto a Deus sobre qualquer outra preocupação. Eis algumas ilustrações.

Já em seu primeiro discurso no Concílio, abrindo o II período de trabalhos, em 29 de setembro de 1963, esclarece que a doutrina cristã, base das reformas conciliares, não pode se reduzir a verdades da razão, mas deve tornar-se palavra de vida. Homem de um cristocentrismo total, declara que o centro do Concílio não é nem a Igreja, nem o mundo, mas Cristo: “Nessa reunião não brilhe outra luz senão Cristo, luz do mundo!” Igualmente na homilia de 26 de outubro diante dos Padres conciliares, volta a insistir: “Só Cristo é fonte de todo o vigor, grandeza e beleza da Igreja”, acrescentando: “A Igreja procede de Cristo e leva a Cristo.” Por que Paulo VI enfatizou tanto o cristocentrismo, senão porque temia que o foco fortemente eclesiológico do Concílio induzisse facilmente – e nisso acertou – ao eclesiocentrismo e, por isso, ao ativismo pastoral e social?[17]

1452093_713540945337664_1873246670_nNo Discurso de encerramento do II período, em 4 de dezembro de 1963, falando da centralidade da liturgia, cuja Constituição acabara de ser aprovada e promulgada, exclama: “Deus sempre em primeiro lugar!” E continua: “Nosso dever primordial é orar.” Mais à frente diz: “A Igreja é, antes de tudo, uma sociedade religiosa, uma comunidade orante.” Prossegue: “O resultado do Concílio depende da intensificação de nossa oração e do fervor de nossas práticas de piedade.” Anuncia, enfim, que irá à Terra Santa com esta finalidade: orar como simples peregrino. Vinte dias antes do encerramento do Concílio, a 18 de novembro de 1965, sublinha com força: “Demos prioridade à reforma moral e espiritual” sobre quaisquer outras reformas conciliares, como as pastorais e disciplinares.

Mas é especialmente no discurso de encerramento solene do Vaticano II, em 7 de dezembro de 1965, que Paulo VI, percebendo o perigo de leituras desfocadas da doutrina conciliar, especialmente as de cunho secularizante, se preocupa em dar uma interpretação expressamente “religiosa” do Concílio. Propondo-se captar e exprimir a “significação religiosa” do concílio que se concluía, declara diante dos Padres conciliares: “A intenção primeira e o principal motivo que nos levou a celebrar o Concílio” foi isto: “a glória de Deus”. Nada menos! E pergunta a modo de exame de consciência: “Que buscamos acima de tudo? Conhecê-Lo e amá-lo? Em que medida progredimos na dedicação à Sua contemplação? No empenho em celebrá-Lo? Na arte de torná-Lo conhecido dos seres humanos?” Entre as várias insistências, contidas nesse discurso conclusivo, sobre o “caráter estritamente religioso” ou espiritual do Concílio, destaquemos a seguinte, que Bento XVII relembrou às vésperas dos 50 anos de abertura do Vaticano II:[18]confissao2

Em nosso tempo os seres humanos estão muito mais voltados para a conquista do Reino da terra do que com a do Reino dos céus. É um tempo em que o esquecimento de Deus tornou-se habitual e sugerido pelo progresso científico (…).É um tempo em que se julga que o ato fundamental da personalidade humana é pronunciar-se pela própria autonomia absoluta (…). É um tempo em que o laicismo parece (…) a sabedoria última da ordem social. (…) Pois bem, foi nesse tempo que se celebrou o Concílio. E foi celebrado para a honra de Deus, em nome de Cristo, sob a ação do Espírito Santo. (…) O Concílio chamou a atenção para a visão teocêntrica e teológica do homem e do universo, como que desafiando os que acusam essa visão de anacrônica e estranha. (…) A pretensão levantada pelo Concílio e que o juízo do mundo qualifica hoje como louca, mas que haverá um dia de reconhecer como humana, sábia e salutar, é a seguinte: Deus existe! Sim, Ele é real. Ele vive. É pessoal. Ele é bom em si mesmo e para com todos nós. É nosso Criador! É nossa Verdade e nossa Felicidade. Assim, quando o espírito humano se esforça por fixar em Deus a mente e o coração no que chamamos de contemplação, vive o ato mais alto e mais pleno que lhe é próprio, ato que, ainda hoje, pode e deve hierarquizar a imensa pirâmide da atividade humana.[19]

Resultados contrastantes do Concíliofa860fe7bfe920af6855b0e8a3b7e63a

Qual foi o resultado do Concílio? Num balanço geral, o saldo final foi amplamente positivo. Basta lembrar os frutos da reforma litúrgica; a maior consciência e participação dos leigos na pastoral e na sociedade; o avanço do diálogo ecumênico; os Sínodos dos bispos e os documentos inspiradores que geraram tratando das grandes questões da Igreja; o estilo de vida mais simples e acessível dos Pastores, incluindo do próprio Sumo pontífice; o novo Direito Canônico (1983),assim como o novo Catecismo da Igreja Católica (1992), considerado por Bento XVI um dos “frutos mais importantes do Vaticano II;[20] e poder-se-ia continuar sem parar. O certo é que a Igreja cresceu em qualidade e, no Terceiro-Mundo, também em número, segundo avaliação de João Paulo II.[21] Em nossa América Latina, especialmente com a Conferência de Medellín (1968), o impacto do Concílio foi imenso, em particular no que toca ao compromisso sociolibertador da Igreja.

Mas houve também resultados problemáticos, senão negativos, a ponto de se ter falado de “crise pós-conciliar”. Para o Card. Ratzinger, tratou-se de uma verdadeira “crise da fé”.[22] Seu sinal mais evidente foi o abandono impressionante dos efetivos eclesiásticos: padres, religiosos/as e fiéis. É um fato que, entrando em contato com o mundo secularizado, o cristianismo em boa parte se mundanizou. Falou-se na “secularização interna” de vastas áreas da Igreja, como a teologia e a própria VC, comprometendo assim a própria identidade cristã.[23] Foi o sal que perdeu sua força (cf. Mt 5,13).

Ora, o que pode acontecer de pior ao cristianismo do que a “mundanização do espiritual”, como dizia Dom Vonier, seguido por H. de Lubac e S. Weil e repetido hoje pelo papa Francisco? Paulo VI, a quem se deve a coragem imensa de ter guiado a barca de Pedro no tumultuado pós-concílio, ficou tão impressionado com a gravidade da crise então vivida que falou em “tempo de nuvens, de tempestade, de escuridão, de buscas e de incertezas” que se teria abatido sobre a Igreja em vez do esperado “tempo de sol”. Chegou mesmo a suspeitar que, como diz, “por alguma fresca entrou a fumaça de Satanás no Templo de Deus.”[24]

Como explicar esses efeitos imprevistos? Há, antes de tudo, uma causa simples: toda mudança produz naturalmente certa confusão. Imaginemos então aquela proposta pelo Vaticano II para a religião mais numerosa do mundo: o catolicismo. É, antes, de se admirar se o abalo não tenha sido maior e se as fraturas não tenham sido mais dramáticas. Além disso, o tipo de cristianismo e de Vida religiosa que o Concílio pôs em relação com a poderosa dinâmica secularista do mundo moderno não possuía a solidez que se esperava. Estando mais apoiado em estruturas externas que em convicções íntimas, aquele tipo de vida cristã e religiosa levou a pior nessa relação. Há também que considerar outro fator de perturbação: a “hermenêutica da ruptura”, cujos fautores imaginam poder-se mudar tudo na Igreja para recriar tudo abimmis, incapazes de perceber que o dever absoluto de fidelidade ao depósito da fé impõe logicamente uma “hermenêutica de reformas na continuidade”.[25] Diga-se, por fim, que, por mais medidas que se tomem, é impossível impedir o ser humano de cometer abusos e de torcer o sentido de qualquer texto, como já advertia Pedro a propósito dos escritos de Paulo (cf. 2Pd 3,16).

Necessidade da renovação espiritual para a renovação pós-conciliar

oraçãoSeja como for, lá onde se manteve firme o primado do espiritual, que é o mesmo dizer da fé viva, conseguiu-se evangelizar o mundo moderno, sem nele ser perder. Mas lá onde se cedeu ao primado da ação, pastoral ou social que fosse, aí também se cedeu ao potente dinamismo praxista e conquistador da modernidade e acabou-se assimilado e engolido por ela.

Mais: no pós-conciliar irrompeu no seio da Igreja um forte movimento que pleiteava claramente o primado da práxis. Suas grandes palavras eram: ação, engajamento, compromisso, mudança, transformação, mobilização, libertação, revolução e por aí vai. E o espiritual? Foi posto em segundo lugar, a serviço da ação. Deu-se, pois, aí uma inegável instrumentalização da fé e da Igreja em favor de causas intramundanas, de resto, em si mesmas justas. Foi uma reedição cristã do politique d’abord (política, primeiro) de Charles Maurras dos anos 30. Mas contra essa palavra-de-ordem, opuseram-se atentos pensadores cristãos, como J. Maritain, M. Blondel e H. de Lubac, apelando para a irrenunciável primauté du spirituel.10414408_900805663316785_5093616416163708535_n

O Concílio, em sua letra e em seu espírito, teria porventura dado aso a essa inversão de prioridades, pela qual a Igreja se tornaria mais ativa que orante, invertendo a hierarquia até então vigente entre o espiritual e o pastoral? Pergunta grave e desafiadora. Seria temerário afirmá-lo simplesmente, mas talvez não pareça intelectualmente honesto negá-lo de todo. Poder-se-ia dizer, a título de hipótese, que o Concílio manteve, em princípio, o primado do espiritual, mas não insistiu particularmente nisso. Não lhe atribuiu maior importância, talvez porque a espiritualidade então emergia como problema. Era um valor dado por descontado e, portanto, não merecedor de maior consideração.

Isso talvez explique porque, quando os documentos conciliares tratam da espiritualidade, não o fazem, em geral, como se estivessem perante uma questão autônoma, mas como uma questão gravitando em torno de outra maior, que era, no caso, a renovação geral das estruturas da Igreja. Não deixa de ser sintomático que o Vaticano II, ao retomar por mais de uma vez a expressão “alma de todo o apostolado”(LG 33b; AA 3a; cf. AA 8a), título da célebre obra de Dom Chautard (+1935), tenha aplicado essa expressão, não à espiritualidade ou “vida interior”, como era aquele livro, mas à “caridade”.[26] Com isso talvez se tenha ganhado em teologia, mas certamente se perdeu em espiritualidade, mais uma vez tirada do foco.

Ter-se-ia, pois, desejado que o primado do espiritual tivesse sido mais afirmado e melhor garantido, tanto na sua fundamentação teórica quanto na sua aplicação prática. Diríamos que, ainda aquém da reelaboração teológica e das propostas de renovação, faltou ao Concílio algo como um “dispositivo espiritual”, ou seja, um conjunto de princípios e de indicações espirituais que pudessem animar a partir de dentro as reformas pastorais e estruturais que seriam implementadas. Sabe-se, com efeito, que sem renovação interior não há renovação exterior que seja bem sucedida.

Como dissemos, os Papas que aplicaram o Concílio remediaram essa deficiência conciliar, situando as reformas dentro de um substancial horizonte espiritual. Entre os sinais dessa orientação mencionemos os seguintes:

600727_10151420345594817_24190201_n– Paulo VI logo depois do fim do Concílio, em 17 de fevereiro de 1966, publicou a Constituição apostólica Poenitemini, indicando a penitência, especialmente em seu elemento interior, como fator essencial da renovação conciliar em curso.

– Para obviar a crise pós-conciliar que punha em questão verdades essenciais da fé, o mesmo papa proclamou o “ano da fé” de 1967-1968 por ocasião dos 1900 anos do martírio dos Apóstolos Pedro e Paulo, encerrando-o com a proclamação do “Credo do Povo de Deus” em que reafirmava as grandes verdades da fé então abaladas.[27]

– Os papas reformistas convocaram regularmente o Sínodo dos Bispos, instituição proposta pelo próprio Concílio, não só para enfrentar problemas doutrinais, morais e éticos (justiça social, catequese, família, leigos, vida, moral, filosofia), mas também para aprofundar os valores centrais da fé, como a Eucaristia, a Palavra e a Nova Evangelização, como se constata pelas últimas assembleias sinodais;Papa-Beato-João-Paulo-II

– Os Pontífices romanos – como se sabe – deram especial apoio aos Novos Movimentos de espiritualidade e apostolado, como a RCC, os Cursilhos, os Focolares, a Comunhão e Libertação, a Opus Dei, etc., a título de poderosos fatores de revitalização de uma Igreja em crise de identidade.

– João Paulo II deu às celebrações da passagem para o Novo Milênio um amplíssimo respiro espiritual situando-as no horizonte do Mistério máximo: a Trindade. Para tanto, fê-las preceder com a carta apostólica Tertio Millennio Adveniente e concluir com a Novo Millennio Ineunte, esta última, de grandíssima densidade espiritual. Com muito acerto e não menos beleza, convida aí a Igreja a entrar no novo milênio “contemplando o rosto de Cristo” (cap. II); em seguida, a avançar “recomeçando de Cristo” (cap. III); e, por fim, a enfrentar os grandes problemas do mundo como “Testemunha do Amor” (cap. IV).

– Bento XVI, convencido de que a “crise de fé” ainda não tinha sido superada “em grandes setores da sociedade” como diz na Porta fidei, convocou a Igreja para um segundo “ano da fé”, o de 2012-2013.[28]

Felizmente, hoje por hoje, no pós-moderno, o espiritual volta com força crescente no proscênio da cultura, ao mesmo tempo em que a dinâmica da modernidade hegemônica entrou em crise e declina. Vivemos, como se diz, não apenas numa “época de transição”, mas numa “transição de época”. Passamos efetivamente do fechamento a Deus para a abertura a75073_432755230143251_1006621197_n Ele; da “morte de Deus” para sua volta e ressurreição; da falta de sentido ou niilismo para a busca de sentido. Esse é um kairós a se “resgatar” pastoralmente (Ef 5,16). Há gente, contudo, que ainda não viu a profunda mudança de cenário histórico que ocorre hoje e continua insistindo no velho praxismo, quando o povo pede espiritualidade. Esses agravam o processo de esvaziamento do cristianismo, inclusive da VC, em relação à sua identidade espiritual e consequentemente à sua relevância social e histórica. Não que se deva agora substituir o compromisso pela espiritualidade, mas voltar a situar aquele no horizonte desta.

III. VIDA CONSAGRADA

Em relação à VC, deve-se dizer que o primado do espiritual pertence à sua própria essência. “Religiosos” são literalmente os “religados” a Deus. Os “consagrados” são os oferecidos e entregues a Deus. Eles são justamente os pneumatikoi ou os “espirituais”, como eram considerados na Antiguidade e na Idade média.

Após os cedimentos pós-conciliares: volta da VC hoje às fontes da espiritualidade

Frente à crise em que modernidade lançou a fé, atraindo-a para seu praxismo febril, tudo levava a crer que a VC tinha mais condições de resistir e sobrepujar a crise. Pois não é a VC a “reserva espiritual” da Igreja? Não deveria, portanto, ser ela a trincheira eclesial mais resistente aos assaltos da modernidade hegemônica e de seu secularismo triunfante? Mas não: a VC cedeu, no pós-concílio, às seduções do mundo moderno, e cedeu talvez mais que qualquer outra instituição da Igreja. Efetivamente, o fato de religiosos e mais ainda de religiosas abandonarem os votos depois do Concílio foi para a Igreja uma verdadeira hemorragia. A Vita Consecrata (1996) o reconhece, falando de modo eufemístico de “período delicado e árduo”, feito de “tensões e angústias” (n. 13).

1428179197739Mas o que mais importa na Exortação citada é ter posto as coisas no lugar, recentrando a VC no espiritual. Isso se vê já de entrada, em seu cap. I. Põe-nos aí in medias res, levando-nos para o alto do Tabor, a fim de contemplar, na solidão, a face do Senhor transfigurado. Outras passagens afirmam com clareza o primado do espiritual, como esta, a propósito da “formação permanente”: “A vida no Espírito tem obviamente o primado”, deduzindo daí que devem ser “tenazmente defendidos os tempos de oração, de silêncio, de solidão” (n. 71a). Afirma ainda que, em toda comunidade religiosa, “a vida espiritual deve ocupar o primeiro lugar no programa” (n. 93b).[29]

Ora, se o primado de Deus vale para toda a Igreja e para cada cristão em particular, ele vale com mais forte razão para o consagrado. Esse primado comum é por ele vivido de modo exemplar e como que “profissional”. A Exortação ora em análise exprime essa ideia dizendo que a VC é “expressão da íntima natureza da vocação cristã, que é a comunhão com Deus” (n. 3, citando AdG 18). Diz também que ela é “sinal e profecia” dessa comunhão teologal, comum a todos os cristãos (n. 15). Assevera por fim que a VC é “imagem da Igreja-Esposa” (n. 34), valendo isso de modo especial para as contemplativas (n. 59).2ff3fa920dbf33bf0caea6e176a9e521

Daí que o preceito de S. Bento, tomado, aliás, de S. Cipriano, “nada antepor ao amor de Cristo” (Regra 4,21; 72,11) e que vale para todo o cristão (corresponde ao primeiro mandamento: “amar a Deus sobre todas as coisas”), vale mais ainda para o consagrado (VC 6d; cf. 84a; 93b).Ora, o sinal mais eficaz dessa primazia do amor a Cristo é o vínculo ou o voto da castidade consagrada, que é, de fato, “o primeiro e mais essencial” vinculo da VC (n. 14). Esse vínculo/voto tem a “primazia” sobre todos os outros, sendo considerado a “porta” da VC (n. 32c). De fato, o “amor virginal” (n. 16c) ou “esponsal” (n. 34), por expressar o propósito firme e permanente de uma entrega exclusiva (“só Tu”) e definitiva (“para sempre”), representa a relação mais intima e mais inteira com o Deus de amor.

Em verdade, a castidade consagrada não é, em si mesma, fim, mas meio: meio para realizar a primazia de Deus, ou seja, da espiritualidade na VC. De fato, a castidade feita voto libera a pessoa dos laços conjugais e familiares a fim de que ele possa se entregar totalmente a Cristo na oração e no apostolado. De fato, ensina São Paulo: “O não casado cuida das coisas do Senhor, de como agradar ao Senhor” (1Co 7,32). Portanto, se a virgindade ou o celibato conferem mais liberdade ao consagrado não é para ele se ocupar com seus interesses individuais (como com as curiosidades da internet…), mas para ter mais tempo para o cultivo da vida espiritual, vida de intimidade com o Senhor através da oração e da lectio. Portanto, o nexo entre castidade perfeita e oração é estreitíssimo. Se o religioso e a religiosa se privam de uma família é para terem mais familiaridade com o Deus trinitário.

1555574_935590646457253_4756577077764835482_n Por buscarem viver o mais possível, através da castidade consagrada, na contemplação amorosa de Deus, que é o fim consumante de toda a existência humana, os consagrados e as consagradas aparecem como um sinal escatológico. Imitando os anjos e mais ainda ressuscitados, que “não casam nem se dão em casamento” (Mt22,30), e superando assim as solicitações do sexo, eles vivem “no limiar da eternidade” (VC 14c; cf. 26). Mas para chegar lá é preciso ser chamado pessoalmente. Daí que o consagrado é, na adjetivação da Vita Consecrata, um ser “tocado” (n. 40), “atraído” (n. 17 e 19), “cativado” (n. 20), “fascinado” (n. 35 e 64c), “encantado” (n. 20), “extasiado” (n. 15 e 16), “arrebatado” (n. 14, 15 e 20), adjetivos esses se podem resumir num único: “apaixonado”.

Portanto, e resumindo, vale dizer que, em nível pessoal, os Religiosos são, como diz a Exortação, “especialistas” em espiritualidade, ou seja, na “busca de Deus”, sendo que os formadores o são a título especial (n. 66a). Por outras, os consagrados são “guias especializados de vida espiritual” (n. 55b). Portanto, os que “professam” a VC são verdadeiros “profissionais”: profissionais da espiritualidade, melhor ainda: profissionais de Deus.

Quanto às Comunidades religiosas, elas são chamadas na Exortação de “escolas de espiritualidade evangélica” (n. 93f). Poderíamos aplicar-lhe a denominação de “laboratórios da fé”, que João Paulo II usou para as Comunidades cristãs em geral, mas que vale muito mais para as Comunidades religiosas.[30]

Para fechar: uma sugestão concreta e simples

O primado de Deus é a questão primacial. A centralidade de Deus é a questão central. Tudo isso parece axiomático. Contudo, continuam a existir o próximo e o mundo. Mas esses recebem do Primeiro e Central sua ordenação decisiva e seu sentido último.

Chegando ao termo dessa palestra, seja permitida aqui uma sugestão concreta: o “Ano da Vida Consagrada”, em 2015, não poderia ser o “Ano do Primado de Deus”? Seria um ano em que os consagrados e as consagradas dedicarão mais tempo e mais ardor a cultivar sua vida interior, cuidando mais da oração, da palavra de Deus e naturalmente da Eucaristia, a fim de crescer na intimidade com o Deus-Amor. Cada um, cada uma poderia, por exemplo, tirar uma hora a mais para vacare Deo: para estar a sós com Ele. “Mas de onde tirar esse tempo?” – poder-se-á perguntar. Ao que se poderá facilmente responder: “Ora, da Internet, da TV e… do sono.”

Pudemos na assembleia ouvir diretamente de D. Braz de Aviz o elenco das iniciativas solenes e públicas que seu dicastério programou para o “Ano da Vida consagrada”. Infelizmente elas são em sua maioria inacessíveis à maioria dos consagrados e consagradas. Já o convite para cada um “entrar em seu quarto, fechar a porta e orar ao Pai em segredo” é algo de simples e acessível a todos e todas. É inclusive algo de mais consentâneo com a “vida escondida com Cristo em Deus” (Cl 3,3), muito própria da Vida consagrada. Essa sugestão poderia até agregada às da Congregação presidida por D. Aviz, recebendo assim de sua autoridade superior um estímulo todo particular.

149356_328303897349249_1555962507140393886_nNão é definitivamente possível sair da crise em que se encontram a Vida consagrada, a Igreja e mesmo a Sociedade, sem decididamente “voltar para Deus”. Era o clamor insistente dos Profetas. Portanto, importa hoje mais que tudo restituir o primado à espiritualidade. Essa é a condição sinequa non de tudo na Igreja, inclusive para revitalizar seus trabalhos apostólicos e sociais. Certo, não basta isso, mas sem isso tudo o mais é vão. “Se o Senhor não construir a casa, em vão trabalharão os construtores” (Sl126/127,1).

O fato é que o imperativo de “procurar em primeiro lugar o Reino e sua justiça” (Mt 6,33), isto é, a santidade (com seus necessários desdobramentos sociais), é aceito intelectualmente por todos. Por ser primário e elementar, ele parece tão claro que se dá simplesmente por descontado. Contudo, essa exigência o mais das vezes não é captada como tal, nem interiormente compreendida e menos ainda levada a sério. É que não se tornou convicção viva dentro de nós e eficaz fora de nós. Coisa estranha! A dificuldade que sentem em particular os cristãos ditos “esclarecidos” de entender esta coisa tão evidente que é “o primado do Primeiro” é um mistério que lembra um pouco o da cegueira do Povo eleito perante a revelação luminosa de Cristo – mistério esse que causava em Paulo “grande pesar e incessante amargura do coração” (Rm 9,2) e que o levou a uma profunda e inconclusa interrogação teológica (cf. Rm 9-11).

Nosso tempo, no entanto, está nos dando um exemplo luminoso e946443_10200468651053250_1024466177_n único dessa exigência nº 1: é o testemunho do papa emérito Bento XVI. Ele renunciou ao sumo-pontificado, não para se livrar de um fardo, mas para assumir um mais exigente e mais alto: o de orar em favor da Igreja, além de refletir. O velho papa se pôs na posição de Maria de Betânia: escolheu “estar aos pés do Senhor”. E o fez não só em favor de si mesmo, mas de toda a Igreja. Quiçá a reconhecida fecundidade apostólica do papa Francisco não se deva às silenciosas orações de seu insigne predecessor.

Para terminar, seja-me concedida uma recordação pessoal, que resume tudo o que aqui pleiteei. Criança, perguntava à mama Regina porque acontecia essa ou aquela desgraça no mundo. Ela, analfabeta, respondia em seu vêneto habitual: Manca Dio: Falta Deus! E quando lhe perguntava o que era preciso fazer para se livrar daquilo e de qualquer outra crise, respondia: Ciapa la corona: Pegue no terço! Eis aí, reduzida ao osso, toda a teologia da vida cristã, incluindo a consagrada!

Fr. Clodovis M. Boff, OSM

Curitiba (PR), 30 de setembro de 2014: festa de São Jerônimo, Doctormaximus.

[1] Palestra no Encontro dos Religiosos e Religiosas (cerca de 800) do Paraná e de outros Estados do Brasil, organizado pela CRB regional e que contou com a presença de D. João Braz de Aviz, Prefeito da Congregação para os Institutos de Vida Consagrada e Associações de Vida Apostólica.

[2] Tivemos oportunidade de escrever nesse ano dois textos de espiritualidade: primeiro, “Espiritualidade e Pastoral”, que sairá na Revista Eclesiástica Brasileira (REB) em outubro do ano corrente; depois, “Espiritualidade e Teologia”, que sairá em Pistis& Práxis, revista da Teologia da PUCPR, no ano próximo. Agora é a vez da Vida Religiosa, e é o presente texto.

[3] Cf. Esta visão de Balthasar se encontra em vários escritos seus. Para uma boa síntese, cf. LEAHY. Il principio mariano nella Chiesa. Roma: CittàNuova, 1999. Podem-se ler em português sobre o tema dois artigos publicados na revista de espiritualidade e pastoral dos Focolares: Perspectivas de Comunhão, v. 10, n. 5 (1998): C. Lubich, “O que o ‘perfil mariano’”, p. 3-4; e F. Ciardi, “O princípio mariano na Igreja”, p. 5-11. A concepção de Maria como “arquétipo da Igreja” foi considerada como umas das “conquistas mais significativas da teologia do século XX” pelo Card. J. RATZINGER em seu livro de entrevistas com P. Seewald: Dio e il Mondo: essere cristiani nel nuovo millennio. Cinisello Balsamo (MI): San Paolo, 2001, p. 322.

[4]Apologia 30 a-b.

[5] Cf. CORBÌ, M. Hacia una espiritualidade laica: sincreencias, sinreligiones, sindioses. Barcelona: Herder, 2007; COMTE-SPONVILLE, A. O espírito do ateísmo: introdução a uma espiritualidade sem Deus. São Paulo: Martins Fontes, 2007; FERRY, L. A revolução do amor: por uma espiritualidade laica. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012.

[6] Pareceria que a mentalidade bíblica dá primazia à prática, inclusive Jesus mesmo, com sua insistência em “fazer a vontade de Deus”, com desprezo da teoria. A verdade, porém, é que antes ainda da prática humana está graça de Deus, como nos ensinaram particularmente Paulo e João, sendo que aquela decorre desta e nela se inspira.

[7] Cf. BOFF, C. O livro do sentido: volume I: crise e busca de sentido hoje (parte crítico-analítica). São Paulo: Paulus, 2014, p. 395-400.

[8] Experiência mística e filosofia na tradição ocidental. São Paulo: Loyola, 2000, 90 pp.

[9] Isso não tolhe a legitimidade de haver “místicas da luta”, “da libertação” e outras afins, à condição, porém, de se inspirarem e se regrarem nos princípios da fé, como mostra nosso artigo referido supra: “Espiritualidade e Pastoral”.

[10] Mensagem de Natal, depois do fim do Concílio, cit. no Compêndio do Vaticano II das Vozes, Petrópolis, 1972, p. 145. Para a modernidade e a posição da Igreja, cf. BOFF, C. O livro do sentido, op. cit., cap. VII, especialmente p. 402-404.

[11] “Uma coisa é o próprio depósito da fé ou as verdades e outra é o modo de enunciá-las”: AAS (Acta Apostolicae Sedis), v. 54 (1962), p. 792, citado também na Gaudium et Spes 62b. Esse princípio volta com outras palavras também em Sacrosanctum Concilium 21a e Unitatis Redintegratio UR 6a.

[12] Contrariando os critérios da história e da importância, e cedendo talvez à tentação do ativismo moderno, o Compêndio do Vaticano II, editado pela Editora Vozes (Petrópolis, 1972), pôs a Constituição sobre a liturgia, a SC, que representa na Igreja a dimensão celebrativa, portanto, espiritual, em 4º lugar!

[13] Entre os raros estudos sobre a espiritualidade segundo o Vaticano II, cf. KLOPPENBURG, B. Normas do Vaticano II para uma vida santa. In: O cristão secularizado. Petrópolis: Vozes, p. 257-278; DE FIORES, S. A espiritualidade do Vaticano II. In: A “nova” espiritualidade. São Paulo: Cidade Nova/Paulus, 1999, p. 31-48; SECONDIN, B. O impacto do Concílio sobre a espiritualidade. In: Espiritualidade em diálogo: novos cenários da espiritualidade cristã. São Paulo: Paulinas 2002, p. 49-65. O que fazem, porém, esses autores é explicitar as implicações espirituais da doutrina conciliar e não expor a fragmentária doutrina espiritual do Concílio, de cujos limites parecem não ter-se dado conta.

[14] Cf. STRUŚ, T. Teologia espiritual. In: ANCILLI, E.; PONTIFÍCIO INSTITUTO DE ESPIRITUALIDADE TERESIANUM (orgs.). Dicionário de espiritualidade. São Paulo: Paulinas/Loyola, 2012, v. III, p. 2405-2406.

[15] Mon journal du Concile. Paris: Cerf, 2002, t. II, p. 465, escrevendo em 7 de novembro de 1965, exatamente um mês antes da conclusão do Concílio. No mês anterior, no dia 5 de outubro, já havia constatado: “Este Concílio terá sido largamente o concílio dos teólogos”: p. 421. Cf. ainda NEUFELD, K. H. Au service du Concile: evêques et théologien sau deuxième Concile du Vatican, in LATOURELLE, R. (éd.). Vatican: bilanet perspectives: vingt-cinqansaprès (1965-1987), Montréal/Paris: Belarmin/Cerf, 1988, p. 95-124.

[16] Cf. RATZINGER, J.; MESSORI, V. A fé em crise?, São Paulo: EPU, 1985, p. 26-28.

[17] Cf. CODINA, V. El Vaticano II en medio del conflito de interpretaciones. In: Pistis&Praxis, v. 4, n. 2, p. 503-515, jul./dez. 2012. Aí o autor pleiteia a “mudança de acento” da questão da Igreja, dos tempos conciliares, para a questão de Deus mesmo, em nosso tempo, acrescentando que teólogos de peso como W. Kasper e K. Rahner já haviam criticado a excessiva atenção que deu o Concílio à questão da Igreja, em detrimento da questão de Deus e de seu sentido para o mundo de hoje. Em apoio a essa tese, refere também o fato de que o próprio Paulo VI, em mensagem à Semana social da França, no lugar da pergunta que lançara no Concílio: “Igreja, que dizes de ti mesma?”, propunha esta outra: “Igreja, que dizes de Deus?” (p. 512-513).

[18] Audiência geral em 10 de outubro de 2012.

[19] Todas as citações que fizemos, incluindo algumas alterações, se encontram em: VATICANO II. Mensagens, discursos, documentos. São Paulo: Paulinas, 2007, 2ª ed.. A última citação está na p. 120, mas é aqui reportando segundo tradução nossa.

[20] Porta Fidei, n. 11.

[21] Cf. JOÃO PAULO II. Cruzando o limiar da esperança: depoimentos a V. Messori. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994, p. 151.

[22] Cf. RATZINGER, J.; MESSORI, V. A fé em crise?, São Paulo: EPU, 1985, p. 16-17 e 28.

[23] CONFERÊNCIA EPISCOPAL ESPANHOLA. Teologia e secularização na Espanha: a quarenta anos da conclusão do Concílio Vaticano II (30 de março de 2006). In: Il Regno-documenti, v. 13, 2006, 427-451, n. 5.

[24] Palavras proferidas na basílica de São Pedro em 29 de junho de 1972. Pouco depois, no discurso de 11 de novembro, Paulo VI sente-se no dever de explicar: “Deixa o ensino bíblico e eclesiástico quem recusa reconhecer a terrível, monstruosa e temerosa realidade do Demônio (…) ou o explica como pseudorrealidade tal uma personificação conceitual e fantástica das causas ignoradas de nosso males (…). (O Maligno) é um ser espiritual, pervertido e perversor.”: Insegnamentidi Paolo VI, X/1972, p. 1169-1170.

[25] Cf. BENTO XVI. Aos membros da Cúria romana em 22 de dezembro de 2005, na tradicional audiência de Natal. In: AAS 98 (2006), 44-45 e Il Regno-documenti, n. 1 (2006), p. 5-10, distinção referida também na Carta apostólica Porta fidei, n. 5, falando em “justa hermenêutica”. No encontro anual com o clero de Roma, em 14 de fevereiro de 2013, Bento XVI, conversando livremente com seus padres, falou na distinção entre o “Concílio dos Padres” e o “Concílio da mídia”. O primeiro seria o “Concílio real”, “o da fé”, que hoje se impõe e cresce; já o segundo seria “o Concílio virtual”, “o da política”, virulento, que teria sido de fato “dominante” e que “criou tantas calamidades” para a Igreja, mas que hoje “se dissipa”: In: Il Regno-documenti, n. 5 (2013), p. 146-152, aqui p. 152. Esta distinção nada mais faz que aplicar aquela, já citada, de João XXIII entre as “verdades” imutáveis da fé e o “modo de sua enunciação”, que é mutável. Retoma-a também LEÃO XIII na famosa carta Testem Benevolentiae,de 22 de janeiro de 1899, contra o chamado “americanismo”, distinguindo entre o erro de adaptar a doutrina da fé, cuja substância é errado querer adaptar à mentalidade moderna, e a “disciplina da vida”, como modo concreto de viver aquelas verdades nos diversos contextos (cf. DH 3340-3346). Na Igreja antiga, especialmente no Oriente, se distinguia e articulava akríbeia(rigor dos princípios da fé) e oikonomía(flexibilidade das aplicações). Como se vê, essa distinção é tradicional na Igreja.

[26] Cf. CHAUTARD, J. B. A alma de todo o apostolado. Porto: Civilização, 2001. A primeira edição é de 1907 e foi retocada diversas vezes até 1917. Curioso é que esse livro começou a ser escrito no navio que trazia aquele abade trapista ao Brasil. Contudo, a Vita Consecrata recupera o sentido original ao afirmar: “A oração é a alma do apostolado” (n. 67b). O mesmo fazem dois documentos da CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E ASSOCIAÇÕES DE VIDA APOSTÓLICA: Verbi Sponsa (1999), n. 7; e Partir de Cristo (2002), n. 9g.

[27] Cf. o importante documentário da CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Documenta: documentos publicados desde o Concílio Vaticano II até nossos dias (1965-2010). Brasília: Edições CNBB, 2011. Basta destacar a “Carta sobre as interpretações errôneas dos decretos do Concílio Vaticano II”, a apenas sete meses de seu término, elencando aí uma dezena de abusos doutrinários: p. 40-42.

[28] Cf. BENTO XVI. Porta fidei: carta apostólica sob a forma de motu próprio com a qual se proclama o ano da fé (2011), n. 2. Diz aí com razão: “Não poucas vezes os cristãos sentem maior preocupação com as consequências sociais, culturais e políticas da fé do que com a própria fé, considerada como um pressuposto óbvio da sua vida diária (…)”: ibid. A carta inteira fala em termos de “novo” e usa palavras com o prefixo “re”, como renovar, redescobrir, readquirir, retomar, para dar a entender que a “volta às fontes” é condição para a renovação da fé e para o relançamento da missão. Ainda no início de 2012, declarava Bento XVI sem equívocos: “Estamos diante de uma profunda crise de fé, de uma perda do senso religioso, que constitui o maior desafio da Igreja de hoje. A renovação da fé deve, pois, ser a prioridade no compromisso de toda a Igreja nos nossos dias”: À plenária da Congregação para a Doutrina da Fé, em 27 de janeiro de 2012. In: Il Regno-documenti, n. 5 (2012), p. 129.

[29] Passo repetido na Instrução da CONGREGAÇÃO PARA OS INSTITUTOS DE VIDA CONSAGRADA E ASSOCIAÇÕES DE VIDA APOSTÓLICA. Partir de Cristo (2002), n. 20d.

[30] Cf. Idem, n. 16d.