O Evangelho, na doutrina cristã, não são apenas as palavras do texto sagrado, mas sobretudo a própria presença do Espírito Santo derramado em nossos corações. O Evangelho é o próprio Amor Pessoal de Deus em nós, a nova medida, a Nova Lei. É a Fonte da Graça que nos eleva ao nível mais excelso.
Santo Agostinho afirmou: “o que são as leis de Deus, escritas por Ele mesmo nos corações, senão a própria presença do Espírito Santo, que é o Dedo de Deus, e que, com a Sua presença, derrama em nossos corações o amor, que é o pleno cumprimento da lei, e o seu fim?” (AUGUSTINUS, S., De Spiritu et littera, n. 21).
Por isso, São Tomás de Aquino ensina sem titubeio que “o principal na Lei do Novo Testamento é a graça do Espírito Santo, que se dá pela fé em Cristo” (THOMAS AQUINAS, S., Summa Theologiæ, Ia-IIæ, q. 106, a. 1, Respondeo).
Existem, assim, dois modos de viver, um que é tão somente natural e outro que é sobrenatural.
A diferença entre ambos é tão imensa que São Paulo chega a dizer que “o homem psíquico não aceita o que vem do Espírito de Deus; é loucura para ele; não pode compreender, pois isso deve ser julgado espiritualmente. O homem espiritual, ao contrário, julga a respeito de tudo e por ninguém é julgado” (1Cor 2,14s).
O termo grego “ψυχικὸς ἄνθρωπος”, “psíquikos antropos”, literalmente, “homem psíquico”, foi traduzido na vulgata latina de São Jerônimo como “animalis homo”, “homem animal”, versão que foi mantida na néo-vulgata, traduzida em versões modernas como “homem natural”.
Do mesmo modo, a palavra utilizada pelo Apóstolo quando diz que o homem psíquico “não aceita” o que vem do Espírito é “οὐ δέχεται”, que num sentido mais literal quer dizer “não acolhe”, “não admite”, “não recebe”.
Pois bem, estas digressões servem apenas para mostrar a tensão existente no original texto paulino. Tratam-se de dois estados diferentes do homem, não contíguos, também não contraditórios, mas certamente não idênticos.
Esta distinção é tão séria que São Tomás chega a dizer que a própria Providência Divina se declina de modo distinto em sua relação com estes dois estados, o do homem natural e o do homem sobrenatural:
“A divina providência se estende aos homens de dois modos. Falhando ao proverem, ou observando a retidão ao fazê-lo, por isto são ditos bons ou maus”.
E então, ele começa a distinguir esta dupla dinâmica:
“Se, pois, observam a reta ordem ao proverem, a divina providência neles observa uma ordem condizente com a dignidade humana, de modo que nada lhes aconteça que não se lhes converta em bem, e que tudo o que lhes provenha os promova ao bem, segundo o que está escrito na Epístola aos Romanos: “Todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” (Rom. 8, 28).
“Se, porém, ao proverem, não observam a ordem que é condizente com a criatura racional, provendo, em vez disso, segundo o modo dos animais brutos, a divina providência os ordenará segundo a ordem que compete aos animais brutos, isto é, de tal maneira que as coisas que neles são boas ou más não se ordenem para o bem deles próprios, mas para o bem dos outros, segundo o que diz o salmista: “O homem, estando em honra, não compreendeu; foi comparado aos ignorantes jumentos, e tornou-se semelhante a eles” (Salmo 48, 13).
“De tudo isto é evidente que a divina providência governa os bons de um modo mais alto do que os maus. Os maus, de fato, segundo que se retiram de uma determinada ordem da providência, não fazendo a vontade de Deus, caem sob uma outra ordem, sendo feito deles a divina vontade” (THOMAS AQUINAS, Quæstiones disputatæ de veritate, q. 5, a. 7, Responsio).
Para notar o quanto a percepção de São Tomás é atinada basta olharmos à nossa volta, para nossa sociedade, em que os homens, repugnando as coisas divinas, se vão animalizando dia após dia.
Com efeito, o homem animal de São Paulo é o homem que vive segundo os seus sentidos, para as suas necessidades primárias; e o homem espiritual é aquele que orienta inclusive estas coisas para o seu fim sobrenatural e, pela graça do Espírito Santo, vive unido amorosamente a Deus, chegando à contemplação, enxergando todas as coisas a partir da abrangência divina e, por isso, as podendo julgar, todas, inclusive alinhando as coisas temporais para que sejam mais adequadas e favoreçam o progresso espiritual dos indivíduos e da sociedade.
Diante disso, não há como não se espantar com o fato de que freqüentemente se tem deslocado o fim sobrenatural da Igreja, interpretando-se o Evangelho como se este tivesse sido escrito para o homem animal, como se a redenção consistisse apenas em criar um mundo em que todos possam suprir suas necessidades primárias.
Se estas proposições são complicadas desde a perspectiva da filosofia política e da economia, quanto mais o são teologicamente!
Um Evangelho que se restringisse a tais horizontes seria a depauperação mais escandalosa, a deturpação mais grotesca, não apenas do Evangelho, mas da própria natureza humana.
O homem de Marx “se distingue dos animais logo que começa a produzir os seus meios de existência” (MARX, K., A ideologia alemã, Martins Fontes, São Paulo, 2002, p. 10) que são aqueles que lhe permitem “beber, comer, morar, vestir-se e algumas outras coisas mais” (Ibidem, p. 21). Este é o homem.
Mas não fomos criados para sermos agrilhoados a estes confins. Deus nos fez para a excelência, para a virtude, que se dá em plenitude quando o próprio Deus nos eleva pela Sua graça.
Isto é tão flagrante que o próprio Aristóteles, ao comentar as virtudes, contrapõe aquilo que chama de “virtude divina” à “bestialidade”.
“À bestialidade opõe-se uma virtude que, não se achando um nome próprio para ela, chamamos de virtude heróica ou divina. (…) Os homens se fazem divinos por chegar ao extremo da virtude, e hábito como este é certo que é contrário à bestialidade (animalidade). (…) Àqueles que, excedem em seus vícios aos outros homens, chamamos de bestiais (brutos ou animais)” (ARISTÓTELES, Ética a Nicômaco, Livro VII, Capítulo I).
Pois bem, se até os pagãos entendem que o homem é chamado à virtude divina, quanto mais o Evangelho da Graça nos eleva a nível mais excelso. O que Aristóteles entreviu confusamente, como que intuindo, o Evangelho nos revela explicitamente e infunde em nossos corações.
Não podemos ficar restritos a tão baixas efemeridades.
Ante tão flagrantes deturpações, se tornam atuais aquelas admoestações de São Paulo; quase podemos ouvir novamente seu brado:
“Ó gálatas insensatos, quem vos fascinou, a vós, ante cujos olhos foram delineados os traços de Jesus Cristo crucificado? Só isto quero saber de vós: foi pelas obras da Lei que recebestes o Espírito ou pela adesão à fé? Sois tão insensatos que, tendo começado com o Espírito, agora acabais na carne?” (Gl 2,1ss).
Enquanto não recuperarmos a percepção da distinção entre o natural e o sobrenatural, nos tornaremos reféns de um falso evangelho, de uma falsa graça, de uma falsa misericórdia, dos falsos profetas, e de uma falsa liberdade, que, nos deixando à vontade na animalidade, nos abandona confinados no aquém.
Padre José Eduardo de Oliveira e Silva
fonte: Zenit