Na família, nenhum papel é descartável. Não existe ex-marido, não existe ex-esposa, não existe ex-filho. O vínculo é eterno.
A família está no centro das grandes discussões mundiais. Não é por acaso que o Papa Francisco resolveu dedicar as tradicionais audiências de quarta-feira, ao longo de todo este ano, justamente a esse tema. A Igreja, como perita em humanidade, não só pode como deve intervir neste debate tão caro à sociedade. A instituição familiar passa por uma crise sem precedentes na história. Recentemente, assistimos perplexos à aprovação do so called “casamento” gay em duas nações de antiga tradição cristã: Irlanda e Estados Unidos. Que estaria na origem de tudo isso? Como os cristãos podem reagir a essa mudança de valores que, a princípio, parece incontrolável?
A primeira coisa a reconhecer, para nossa tristeza, é o fracasso das famílias no que se refere ao testemunho das virtudes evangélicas e humanas. O “casamento” gay é apenas a ponta do iceberg. O problema vai muito além das uniões entre pessoas do mesmo sexo. Quando os heterossexuais, desgraçadamente, aceitaram a proposta do divórcio como uma via legítima de solução para os conflitos entre marido e mulher, eles simplesmente abriram caminho para que outros parceiros sexuais reivindicassem seus “direitos” civis. Explicamos: ao tornar-se um contrato, o matrimônio deixou de ser um vínculo indissolúvel para converter-se em uma espécie de prestação de serviços com prazo de validade. Tem mais. Com o advento dos métodos contraceptivos, os relacionamentos ficaram reduzidos ao prazer — não se casa mais para ter filhos e formar família; casa-se por puro desejo sexual. Assim, quando terminam as paixões, terminam também os casamentos. Essa é a grande tragédia familiar da atualidade. A lógica do “casamento” gay foi criada pelos heterossexuais.
No capítulo 11 do segundo volume de sua famosa obra A sociedade humana, o sociólogo Kingsley Davis faz uma importante distinção entre o que ele chama de grupos primários e grupos secundários.Grupos primários, segundo Davis, seriam aqueles cujas funções são permanentes. Um pai, por exemplo, sempre exercerá sua paternidade, ainda que esteja morto. O filho lembrar-se-á dele e de suas lições por toda a vida. Trata-se de algo insubstituível. O grupo secundário, por outro lado, já não possuiria a mesma dinâmica. Para Davis, nos grupos secundários estariam as relações empresariais, políticas e administrativas — funções evidentemente descartáveis. Um empresário pode ser substituído por outro mais competente e assim por diante. O primeiro grupo estaria marcado por relações virtuosas; o segundo, pelas disputas de poder.
Bingo. O divórcio e a mentalidade contraceptiva transformaram a família em um grupo secundário. Essa mudança, ardilosamente programada por militantes como Kingsley Davis, está na raiz da crise familiar à qual assistimos hoje [1]. Não existem mais ambientes virtuosos. Tudo resume-se ao conflito, às disputas de poder, ao bem-estar pessoal. Notem: as famílias estão resolvendo seus conflitos na delegacia. Esposos brigam por propriedades. Filhos ameaçam os pais com a anuência de estatutos, conselhos e ideólogos. Marido, mulher e filhos tornaram-se descartáveis, graças à obsessão materialista.
Há poucos dias, a imprensa comemorava uma suposta aprovação do Papa Francisco ao divórcio. Diziam: “Finalmente a Igreja abre os olhos para o mundo moderno”. É preciso esclarecer duas coisas. Primeiro, o Santo Padre falava de situações de risco à família, quando, por exemplo, um dos cônjuges age de forma violenta. Ora, em tais situações — explica o Catecismo —, “a Igreja admite a separação física dos esposos e o fim da coabitação” [2]. Como se pode ver, Francisco não disse nada de novo ou revolucionário. Isso já era ensinado pela Igreja há muito tempo. Somente pessoas ignorantes ou de má fé podem interpretar as palavras do Papa de outro modo. Segundo, o fim da coabitação — como evidencia o Santo Padre logo depois da “polêmica” declaração — não significa o término do vínculo matrimonial. Ao contrário, diz Francisco, “graças a Deus não faltam aqueles que, apoiados pela fé e pelo amor aos filhos, testemunham a sua fidelidade em um vínculo no qual acreditaram, embora pareça impossível fazê-lo reviver” [3].
Porém, é claro que a mídia soltaria fogos com uma aprovação da Igreja ao divórcio. Infelizmente, a maior parte dos jornalistas é partidária dessa mentalidade materialista. Vejam o que é exaltado nas capas de revistas e de jornais. Percebam o interesse vil com que se noticiam traições e términos de casamentos. Avaliem a maneira como a rotatividade nos relacionamentos é celebrada por esses meios de comunicação. E é mais do que óbvio que, em uma sociedade baseada apenas nos interesses financeiros e sentimentais, surgiriam outros modelos de vivência sexual. Como lhes negar o reconhecimento civil? Como dizer que não se trata de família?
A salvação da família passa, evidentemente, pela retomada dos valores essenciais do sacramento do matrimônio. Digamos com clareza: a família deve voltar a ser um grupo primário, na qual estejam presentes as virtudes da humildade, da magnanimidade e, sobretudo, da caridade. Uma família necessita do dom do perdão, do saber compreender as fraquezas do outro, no intuito de ajudá-lo a crescer. Isso supõe um comprometimento indissolúvel. “Só a atração recíproca”, como explica São João Paulo II, “não pode ter estabilidade e, portanto, está facilmente, se não de maneira fatal, exposta a extinguir-se” [4]. O amor conjugal é, ao contrário, “essencialmente um empenho para com a outra pessoa, empenho que se assume com um preciso ato de vontade” [5]. Resumindo: uma família deve caminhar junta para o céu.
Na família, nenhum papel é descartável. Não existe ex-marido, não existe ex-esposa, não existe ex-filho. O vínculo é eterno. Uma só carne. Compreender isso faz-se essencial para a cura das famílias. Família, torna-te aquilo que tu és!
Por Equipe Christo Nihil Praeponere
Referências
- AV. 89. Herodes e Pilatos ficaram amigos.
- Catecismo da Igreja Católica, n. 1649.
- Francisco, Audiência Geral, 24 de junho de 2015.
- João Paulo II, Discurso ao Tribunal da Rota Romana, 21 de janeiro de 1999, n. 3.
- Idem.