A guerra na Ucrânia eclodiu em 24 de fevereiro de 2022 quando a Rússia atacou e invadiu o país. E ao longo destes nove meses, foram muitos os apelos do Papa Francisco em favor da paz e do diálogo. Mas também de denúncias sobre tantas crueldades cometidas nesta guerra que ele definiu como “sacrílega”.
Logo, em 24 de novembro, o Papa escreveu uma carta dirigido a nação da Ucrância. Nela o Pontífice expressa toda sua proximidade e solidariedade ao “martirizado povo ucraniano”.
Leia na íntegra!
Desde há nove meses que se desencadeou, na vossa terra, a absurda loucura da guerra. No vosso céu, não para de ribombar o sinistro fragor das explosões e o silvo alarmante das sirenes. As vossas cidades são marteladas pelas bombas enquanto chuvas de mísseis provocam morte, destruição e sofrimento, fome, sede e frio. As vossas estradas viram muita gente obrigada a fugir, deixando suas casas e amizades. A par dos vossos grandes rios, correm diariamente rios de sangue e lágrimas.
Quero unir as minhas lágrimas às vossas, assegurando-vos que não há um dia em que não esteja unido convosco e não vos traga no meu coração e na minha oração. A vossa dor é a minha dor. Hoje, na cruz de Jesus, vejo-vos a vós; vós que sofreis o terror desencadeado por esta agressão. Sim, a cruz que torturou o Senhor revive nas torturas achadas nos cadáveres, nas valas comuns descobertas em várias cidades, nestas e em muitas outras imagens cruentas que penetraram na alma fazendo elevar-se um grito: Por quê? Como podem homens tratar assim outros homens?
Voltam à minha mente muitas histórias trágicas de que tive conhecimento. Em primeiro lugar, as dos pequeninos: quantas crianças mortas, feridas ou que ficaram órfãs, arrancadas às suas mães! Choro convosco por cada pequenino que perdeu a vida por causa desta guerra, como Kira em Odessa, como Lisa em Vinnytsia, e como centenas de outras crianças: em cada uma delas, vemos a derrota da humanidade inteira. Agora elas estão no seio de Deus, veem as vossas aflições e rezam para que tenham fim. Mas, como não sentir angústia por elas e por todos aqueles, pequenos e grandes, que foram deportados? É incalculável a dor das mães ucranianas.
Depois penso em vós, jovens, que, para defender corajosamente a vossa pátria, tivestes de pegar em armas em vez dos sonhos que nutríeis para o futuro; penso em vós, esposas, que perdestes os vossos maridos e, cerrando os dentes, continuais em silêncio, com dignidade e determinação, a fazer todos os sacrifícios pelos vossos filhos; penso em vós, adultos, que procurais de todas as formas proteger os vossos entes queridos; penso em vós, idosos, que, em vez de transcorrer um sereno ocaso, fostes lançados na noite tenebrosa da guerra; penso em vós, mulheres, que sofrestes violências e carregais grandes pesos no coração; penso em todos vós, feridos na alma e no corpo. Penso em vós e estou unido a vós com afeto e admiração pelo modo como enfrentais tão duras provações.
E penso em vós, voluntários, que vos consumis dia a dia pelo povo; penso em vós, Pastores do povo santo de Deus, que – muitas vezes com grande risco para a vossa incolumidade – permanecestes junto do povo, levando a consolação de Deus e a solidariedade dos irmãos, transformando com criatividade lugares comunitários e conventos em albergues onde oferecer hospitalidade, socorro e alimento a quem se acha em condições difíceis. E penso ainda nos refugiados e deslocados internos, que se encontram longe das suas casas, muitas das quais destruídas; e penso nas Autoridades, pelas quais rezo: sobre elas recai o dever de governar o país em tempos trágicos e tomar decisões clarividentes em prol da paz e para desenvolver a economia durante a destruição de tantas infraestruturas vitais, tanto na cidade como no campo.
Queridos irmãos e irmãs, em todo este mar de ruína e dor – à distância de noventa anos daquele genocídio terrível do Holodomor –, admiro o vosso benévolo ardor. Apesar da imensa tragédia que suporta, o povo ucraniano nunca desanimou nem se abandonou à lamentação. O mundo reconheceu um povo audaz e forte, um povo que sofre e reza, chora e luta, resiste e espera: um povo nobre e mártir. Continuo unido convosco, com o coração e com a oração, com a solicitude humanitária, a fim de que vos sintais acompanhados, para que não nos habituemos à guerra, deixando-vos sozinhos hoje e sobretudo amanhã, quando porventura nos sobrevier a tentação de esquecer os vossos sofrimentos.
Nestes meses, em que a rigidez do clima torna ainda mais trágico o que vivestes, quero que o afeto da Igreja, a força da oração, o bem que vos querem muitíssimos irmãos e irmãs, em todas as latitudes, sejam carícias no vosso rosto. Dentro de algumas semanas, será Natal, fazendo-se sentir ainda mais o estridor do sofrimento. Mas quero voltar convosco a Belém, à provação que a Sagrada Família teve de enfrentar naquela noite, que se anunciava unicamente fria e escura. Em vez disso, a luz chegou: não dos homens, mas de Deus; não da terra, mas do Céu.
Nossa Senhora, Mãe de Deus e nossa, vele por vós. Ao seu Imaculado Coração consagrei, em união com os Bispos de todo o mundo, a Igreja e a humanidade, em particular o vosso país e a Rússia. Ao seu materno Coração, apresento os vossos sofrimentos e as vossas lágrimas. A Ela, que «trouxe – como escreveu um grande filho da vossa terra – Deus ao nosso mundo», não nos cansemos de pedir o suspirado dom da paz, na certeza de que «nada é impossível a Deus» (Lc 1,37). Que Ela realize os justos anseios dos vossos corações, cure as vossas feridas e vos dê a sua consolação. Eu estou convosco, rezo por vós e peço-vos para rezardes por mim.
Que o Senhor vos abençoe e Nossa Senhora vos guarde.
Roma – São João de Latrão, 24 de novembro de 2022.
Francisco